Uma reflexão sobre a Teologia da Misericórdia
Para sintonizar com Ele e captar sua experiência de Deus é necessário amar a vida e mergulhar nela, abrir-se ao mundo e escutar a criação.1
Um amor sem limites
A misericórdia de Deus é ponto inicial e fundamental da missão de Jesus, no Evangelho de João (cf. 3, 16-21), Deus amou tanto o mundo que deu o Seu Filho único para que todo que nEle crer não pereça.
As palavras contidas nesses versículos demonstram a finalidade da missão de Jesus de atestar o amor misericordioso do Pai, um amor sem limites e que está ao alcance de todos os seres humanos. É um amor que transparece o encontro de Jesus com sua misericórdia que não vem para condenar, mas para salvar.
É neste contexto que se pode falar em uma “teologia da misericórdia” e desafiar a fazer da misericórdia o principal atributo de Deus, como essência divina orientada para o mundo e para os seres humanos.
Deus vem até nós
Uma teologia para uma civilização do amor, um lugar único, que torna possível esta verdade que consiste em um local: o próprio coração de Deus.
Podemos pensar no momento do enamoramento de Deus por nós em sua Kenose, que a considero como a perfeita e plena epifania da misericórdia de Deus que se dá em Cristo na cruz:
“Ele, existindo em forma divina, não se apegou ao ser igual a Deus, mas despojou-se, assumindo a forma de escravo e tornando-se semelhante ao ser humano” (Fl 2,6-7).
Essa gratuidade e disponibilidade de coração aberto e sensível ao sofrimento é determinante para o surgimento de uma teologia da misericórdia em um mundo onde o “eu” e o “tu” parecem excluir a possibilidade do “nós”.
Há mais alegria em dar
Dentre os fatores que foram determinantes para a configuração deste cenário, encontra-se o grande paradoxo do amor: “quem quer salvar a sua vida vai perdê-la, mas quem perder a sua vida por mim e pelo Evangelho vai encontrá-la” (Mc 8,35).
Segundo R. Caldera, “o estatuto mais próprio do amor é o amor pessoal mútuo”. De acordo com São Tomás de Aquino, “o amor mais perfeito é o correspondido, o amor mútuo, no qual a vontade de uma pessoa se une (inere) ao ser de outra”.
Dentro de um mundo líquido e conflitante, onde o que vale mais são as conexões e suas possibilidades de escolhas temporais, surge a necessidade de estabelecer o que São Tomás irá chamar de “redamatio”: “amar de volta”, “retribuir ao amor”.
A “redamatio”, torna possível a autentica intimidade, ou seja, o entrar no íntimo da pessoa amada, que é próprio do amor e permite o conhecimento pessoal mais perfeito.
“A misericórdia autentica cristã é ainda, em certo sentido, a mais perfeita encarnação da igualdade entre os homens e, por conseguinte, também a encarnação mais perfeita da justiça” (São João Paulo II, Dives in Misericordia).
A Bondade infinita
No vasto universo da teologia católica produzida após o Concílio Vaticano II, podemos encontrar a mensagem clara da misericórdia de Deus no ser humano, a partir do mistério do Amor. Muitas reflexões sobre a misericórdia nasceram da experiência de fé e da necessidade de mostrar a cada um a face do Deus Misericordioso pelos sinais de sua bondade, assim, o próprio Jesus ensina o jovem rico que o pergunta: “Mestre, o que devo fazer de bom para ter a Vida Eterna?”.
Ele responde: “Por que me perguntas sobre o que é bom? Um só é Bom!” (Mt 19,16-17). Nesse trecho, Jesus demonstra que a última palavra não está com o mal, mas sim com o bem.
Na obra do teólogo Hans Urs von Balthasar intitulada de “Somente o amor é digno de fé”, ele lança as suas bases de uma teologia estética centrada no amor e na misericórdia, revelando a beleza do amor inseparável do esplendor, da glória e da cruz.
A Glória da Cruz
Para Von Balthasar, o esplendor, a glória e a Cruz, alcançam a máxima manifestação no amor misericordioso, que ele define:
“Já na vida da natureza, a beleza encontra em eros o seu lugar peculiar: o objeto amado, quer se trate de amor profundo quer de superficialidade, aparece sempre como estupendo, maravilhoso e, aquele que o contempla, só tem consciência de sua magnificência através de uma precisa e determinada relação de amor, por mais profundo ou superficial que ele seja.
Todos esses dois polos homogêneos são superados no quadro da Revelação, onde o Logos divino que desce quenoticamente manifesta-se como ágape e, enquanto tal, como glória, esplendor”. 7
Amor às coisas criadas
O amor revelado por Jesus gera como resposta o amor à Igreja, na comunidade cristã e no indivíduo. É Deus que faz iluminar o amor e o faz resplandecer no coração do homem (Sl 26). “O Senhor é minha luz e minha salvação”, essa luz não pode ser contida, ela deve ser refletida em nossas ações.
Enquanto imagem de Deus (Gn 1,26), o ser humano possui o germe do amor, pois nasce do amor que é Deus (I Jo 4, 1-21), mas como nenhuma criança recém-nascida não é capaz do amor se não por despertar para o amor através de ser amado, assim é o coração do homem, que tem que ser amado, para poder acordar a sua compreensão de Deus, não somente pela fé, mas também pela sua razão.
Para o cardeal Walter Kasper, “a misericórdia é indispensável para o crescimento e amadurecimento do coração do ser humano”.
Na vida, obra e mensagem de Jesus Cristo, o amor misericordioso de Deus se torna visível e palpável; Ele é o rosto da misericórdia do Pai, “quem o vê, vê o Pai” (cf. Jo 14,9). Com a sua palavra, seus gestos e toda a sua Pessoa revela a misericórdia de Deus.
Sede misericordiosos
Ser misericordioso significa, então, colocar-se no lugar do outro, descobrir nele o próprio “eu”, percebê-lo e aceita-lo como próximo e ir ao encontro; estar junto é algo mais radical que somente assisti-lo em sua necessidade material.
Das considerações feitas até aqui, surge uma reflexão: de que forma a teologia da misericórdia pode ajudar a Igreja e o homem a serem mais misericordiosos?
Muitas vezes concebemos uma teologia da misericórdia pobre, muito banalizada e superficial, apegada a pessoas fracas e vulneráveis somente e esquecemos de uma visão de doação de Cruz, que é a salvação da alma.
Somos chamados a voltar a falar do sofrimento e da ciência da cruz, pois a unidade entre Salvação e Misericórdia, nasce dessa mesma natureza; não podemos anular a cruz de Cristo, pois estaríamos anulando todo plano de Salvação.
Há uma inconsistência no mundo entre a busca frenética do não sofrimento, dos dessabores, das frustrações, como se pudesse ausentar o ser humano de tal situação em que se faz por si só, ao devir de sua existência.
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Dois abismos
Aqui, espaço de reflexão profunda na teologia da misericórdia, onde Jesus se encontra com a mulher adultera (cf. Jo 8, 1-11) e se abaixa para elevá-la. Santo Agostinho chama essa cena de encontro entre a Miséria e a Misericórdia.
Jesus que é posto à prova, estando prestes a condenar e ser condenado ao mesmo tempo, se coloca na mesma condição que a pecadora, menos no pecado e dá à mulher adúltera a chance do recomeço: “Ninguém te condenou? E ela disse: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu também te condeno; vai-te e não peques mais”.
Essa cena define a teologia da misericórdia: não condenar e fazer justiça de forma instantânea. “Nosso Deus é misericordioso e justo; nosso Deus é compassivo” (Sl 116,5). Justiça e misericórdia são dois atributos que se completam.
Assim somos chamados a ocupar essa brecha que a sociedade oferece para a mensagem da misericórdia, do mesmo modo que a teologia clássica evidenciou a relevância de questões escatológicas, a teologia da misericórdia é chamada a estar no coração do ser humano.
Deus teve a capacidade de sair de si por amor aos homens, a plenitude de Deus se manifesta em seu amor, na sua compreensão. Se compadece e se coloca ao lado dos que sofrem, pois, sempre haverá sofrimento que necessite de consolação e ajuda.
- Denilson Dulianel – Missionário da Comunidade de Vida, Formado em Adm. de Empresas, Teologia, Filosofia e pós graduação em Filosofia Candidato Diaconato Permanente
Referências Bibliográfica
1- PAGOLA,José Antonio : Jesus, aproximação histórica; 7. Ed – Petrópolis RJ, Vozes,2014. 2- JOÃO PAULO II, S. Exortação Apostólica Familiareis Consortio, Vaticano,1981.
- Ibedem, p.20
- T Caldera, Sobre a natureza do amor, Cadernos Filosóficos, n. 80, 1999, p.62 5- AQUINO, Tomás, Summa teológica, Ia IIe, q. 28, art 2, sed contra.
- Termo utilizado pelo Sociólogo Polonês Zygmunt
- VON BALTHASAR, U Solo I’amore è credibile. Roma: Boria, 2006, p.11-39. 8- Ibedem.
- FRANCISCO, papa Misericordiae vultus O Rosto da Misericórdia, Paulinas 2015. 10- Conc. Ecum. Vat. II, dogma Dei Verbum, n4
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