A ABERTURA À VIDA – CORAÇÃO ABERTO À VONTADE DE DEUS

“Quem dera que hoje ouvísseis sua voz: ‘Não endureçais os corações, como em Meriba, como no dia de Massa no deserto, onde vossos pais me tentaram, me provocaram, apesar de terem visto as minhas obras’” (Sl 94(95),7c-9).

A abertura à vida parte anteriormente de uma abertura de coração à vontade de Deus. Estarmos abertos, principalmente, para que Ele, que é a Vida, possa nos conduzir e guiar em Sua Divina Vontade tocando nossos corações.

Perguntemo-nos: como está o meu coração? O que o coração tem a ver de fato com a espiritualidade? O coração, no sentido religioso, sempre foi uma simbologia de extrema importância numa representatividade da figura humana e que, em especial na Sagrada Escritura, ocupa um espaço muito significativo na sua simbologia.

Na Sagrada Escritura observamos inúmeros sentidos e significações que demonstram isso, para citar algumas delas: pesar e tristeza (cf. Pr 14,10.13; Jo 14,1); a contrição (cf. Sl 51,19);  sente amor (cf. 2Cor 7,3; 6,11); a boca transmite do que está cheio o coração (cf. Mt 12,34); é do coração do homem que brotam as más intenções (Mc 7,21; Mt 15,19); é a ele que o Espírito é enviado (cf. Gl 4,6);  e mais uma infinidade de citações que poderíamos aqui levantar.[1]

Mas o essencial para o que estamos refletindo é entender o coração como o centro do ser humano, num sentido ontológico[2], extremamente significativo, principalmente no caráter religioso; é como um lugar da habitação de Deus. A carta aos Efésios nos oferece algo lindo e fantástico:

“Por esta razão, dobro os joelhos diante do Pai – de quem toma o nome toda família no céu e na terra, para pedir-lhe que conceda, segundo a riqueza da sua glória, que vós sejais fortalecidos em poder pelo seu Espírito no homem interior, que Cristo habite pela fé EM VOSSOS CORAÇÕES e que sejais arraigados e fundados no amor. Assim terei condições para compreender com todos os santos qual é a largura e comprimento e a altura e profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede todo conhecimento, para que sejais plenificados em toda a plenitude de Deus” (Ef 3,14-19).

Ainda neste campo de comparação, vemos esta figura do nosso coração que hospeda a nossa consciência. Vejamos o que nos diz o Catecismo da Igreja Católica:

“Na intimidade da consciência, o homem descobre uma lei. Ele não a dá a si mesmo. Mas a ela deve obedecer. Chamando-o sempre a amar e fazer o bem e a evitar o mal, no momento oportuno a voz desta lei RESSOA NO ÍNTIMO DE SEU CORAÇÃO… É UMA LEI INSCRITA POR DEUS NO CORAÇÃO DO HOMEM. A consciência é o núcleo secretíssimo e o sacrário do homem, onde ele está sozinho com Deus e onde ressoa sua voz” (CIC §1776[3]).

É traçando este paralelo de consciência e coração, que nossa reflexão entra no processo de aprofundar o quanto a nossa liberdade tem a definição e palavra final do quanto e como Deus poderá agir em nossos corações (consciências) para apresentar Sua Divina Vontade e, por incrível que pareça, submeter ao nosso livre arbítrio realizar ou não aquilo que Ele nos pede.

Ao ser humano, sem a Fé e a Graça, é impossível agradar a Deus e realizar a sua Divina Vontade[4]. Se faz necessário reconhecer-se dependente e ter a humildade de reconhecer o quanto nossos corações precisam de cura, de pureza, para poder obedecer a Deus. Pois, é na pureza de nossos corações que nos tornamos capazes de ver a Deus[5]. Ver a Deus é muito além do que nossos olhos mortais são capazes. Estamos aqui diante do lindo mistério da simplicidade de coração próprio daqueles que têm um coração puro como nos ensina Santo Agostinho no livro “O Sermão da Montanha”: “O coração puro é o mesmo que o coração simples. E, assim como a luz só pode ser vista por um olho limpo, assim também Deus só será visto por aquele que tiver um coração limpo”[6].

Vivemos em um tempo de uma polarização enorme em várias camadas da sociedade. Direita e esquerda, conservadores e liberais, ortodoxos e modernistas, dentre outros tantos extremos que lidamos no nosso dia a dia. Um dos assuntos em voga é a realidade das famílias numerosas, fonte de muita discussão e um prato cheio para a polarização religiosa hodierna daqueles que, seja de um lado ou de outro, tentam defender qualquer ponto de vista sobre a situação com alegações “recheadas de verdades” que muitas vezes transvestem a defesa de uma causa própria.

Ouvi uma colocação interessantíssima do Prof. Felipe Aquino, da editora Cléofas, que para mim é uma visão muito ponderada e que, não querendo ser um diagnóstico final e nem uma verdade eterna, nos dá um ponto equilibrado de reflexão. Ele dizia que, no seu ponto de vista, a discussão delicada a respeito dos filhos, hoje é o fato de que existem muitas pessoas que poderiam os ter e não os têm, e infelizmente, muitas pessoas que não poderiam tê-los e os têm.

Este espaço não nos favorece uma discussão mais ampla, mas o poder ou não poder ter filhos acima citado é unicamente a constatação de pais que teriam condições mais que financeiras, teriam condições psicológicas, educacionais, de valores e, principalmente o que é prometido no Sacramento do Matrimônio, educar seus filhos na lei de Deus e da Igreja, mas não o fazem presos às estruturas referentes à quantidade de quartos da própria casa, do colégio muito caro onde não terão condições de colocar os filhos e por aí a lista segue. Enquanto, por outro lado, pessoas com pouco acesso à informação, sem as condições saudáveis anteriormente citadas, acabam tendo muitos filhos aos quais não conseguem oferecer o mínimo de dignidade necessária.

Uma realidade dura e muito atual é que, na impossibilidade de criar mais filhos, estas pessoas que não têm de fato condições para isso, muitas destas mães desesperadas e, por vezes até pressionadas ou com desequilíbrio emocional, acabam por abandonar crianças recém-nascidas em latas de lixo, isso quando não, no ato de desespero, acabam até por recorrer à prática do aborto.

A finalidade de levantar esta questão é a de nos lembrar da dimensão da paternidade responsável que o que o Santo Padre, o Papa Francisco, nos trouxe no número 167 da exortação apostólica Amoris Laetitia, inclusive recordando São João Paulo II:

As famílias numerosas são uma alegria para a Igreja. Nelas, o amor manifesta a sua fecundidade generosa. Isto não implica esquecer uma sã advertência de São João Paulo II, quando explicava que a paternidade responsável não é “procriação ilimitada ou falta de consciência acerca daquilo que é necessário para o crescimento dos filhos, mas é, antes, a faculdade que os cônjuges têm de usar a sua liberdade inviolável de modo sábio e responsável, tendo em consideração tanto as realidades sociais e demográficas, como a sua própria situação e os seus legítimos desejos”[7].

O desejo aqui não é o de ditar ou querer induzir somente as pessoas a terem famílias numerosas, mas sendo que estamos falando para um público que minimamente está buscando a fé cristã, é indispensável lembrar que a abertura à vida é uma condição intrínseca do matrimônio cristão. Porém, se faz necessário um exame profundo de consciência e um discernimento responsável que só se torna possível ao analisar a própria consciência, escutar a fala de Deus ao coração. A abertura à vida não se limita à quantidade de filhos gerados, ela consiste em acolher o Deus da vida que fala aos nossos corações e nos ilumina neste processo de discernimento.

Minha esposa e eu planejávamos ter três filhos. Desde o namoro este era o desejo, unido, inclusive, a um propósito: ter um primeiro bebê, adotar o segundo e decidir depois se adotaríamos ou teríamos outro. Após mais de dez anos de casados, sem impedimentos clínicos que explicassem, não conseguíamos engravidar e, após tratamentos de fertilidade sem resultado, optamos em adotar.

A Isabela chegou com um ano e dez meses de vida e foi a alegria não somente nossa, mas de toda nossa família de sangue quanto da família Aliança de Misericórdia. O número de sinais de Deus sobre este caminho não caberia nem se todas as páginas desta revista estivessem disponíveis, mas a experiência mais marcante é que nós demos entrada ao processo no Fórum no dia 11/11/2013 e a Isabela nasceu no dia 13/11/2013. Quando vimos isso no momento que nos chamaram para conhecê-la, era como se Deus nos dissesse: “Ela nasceu para vocês”!

Quando falamos de abertura à vida, mais que falar em ter muitos filhos ou da adoção, devemos lembrar que a fecundidade não está reduzida a um caráter meramente biológico. Aqui não temos como reproduzir, mas convido a dar uma corridinha rápida na Exortação Apostólica Amoris Laetitia e ler os números 178 ao 184, no capítulo quinto da exortação, com o subtítulo “Fecundidade Alargada”, será uma experiência e tanto; arrisquem-se!

Enfim, somente uma verdadeira abertura de coração nos trará a capacidade de discernir profundamente a Divina Vontade de Deus para nossa vida, onde encontraremos a realização profunda do nosso ser.

 

Júlio Neto – Missionário da Comunidade de Vida

[1] Cf. MCKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. (tradução Álvaro Cunha… et al.; revisão geral Honório Dalbosco. São Paulo: Ed. Paulinas, 1983.p 183-184.

[2] Ontologia (do grego ontos “ente” e logoi, “ciência do ser”) é a parte da metafísica que trata da natureza, realidade e existência dos entes. A ontologia trata do ser enquanto ser, isto é, do ser concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a todos e a cada um dos seres objeto de seu estudo.

[3] CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. § 1776. 9ª ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Ave-Maria Loyola, Paulinas, Paulus, Salesiana, 2002.

[4] Cf. Hb 11,6

[5] Cf. Mt 5,8

[6] AGOSTINHO, SANTO. O Sermão da Montanha. Minha Biblioteca Católica, Dois Irmãos, RS, 2019. P. 9.

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