Até onde vai a nossa capacidade de sofrer com o outro?

Ciudad Bolívar, Venezula, 30 de abril de 2020

Já diz o famoso ditado: “o que os olhos não veem, o coração não sente”. Em muitos sentidos há razões para pensar assim, pois quando um sofrimento alheio não afeta a nossa realidade, pouco nos importa. A situação pode nos comover por algum tempo, mas logo a rotina nos faz esquecer.

Quantas notícias nos meios de comunicação sobre situações difíceis vividas em outros estados ou países: fome, miséria, guerra, mortes. Mas quem realmente se importa?

É preciso estar ali para sentir o peso da realidade. Sem este colocar-se inteiramente no lugar do outro, toda tentativa de compreensão fica sem frutos e pode ser comparada com a palha queimada pelo fogo: logo se apaga!

Por isso, é preciso sempre voltar a acender a chama, e quantas vezes não passamos por isso? Quantas experiências de encontro com o sofrimento dos outros caíram no esquecimento e hoje não nos afetam mais?

Fazer memória é suficiente para reacender a chama. Esta partilha quer reacender em você essa chama.

Não é de hoje que surgem notícias vindas da Venezuela, que quase sempre nos comovem e causam indignação. Alguns tentam minimizar a situação, afirmando ser um exagero por parte daqueles que fazem chegar essas notícias.

Escassez de alimentos, produtos de higiene, filas para poder comprar, salário-mínimo de 2 dólares, abandono de crianças, falta de remédios, saúde pública precária, dentre outras coisas. Será mesmo que a Venezuela passa por tanta crise?

Criança venezuelana recebe alimento de voluntário
(Foto: Portal R7). Criança venezuelana recebe alimento de voluntário.

O que realmente acontece

Em 2015 fui enviado para a missão na Venezuela, em Ciudad Guayana, a 700 quilômetros da fronteira com o Brasil. Naquele ano já haviam notícias da crise que o país enfrentava, e isso, ao contrário de causar medo, me dava a alegria de poder sair de missão em uma terra necessitada de Deus.

Os primeiros meses foram os mais difíceis, tempo de adaptação, de aprender um novo idioma, adentrar em uma cultura diferente, mas principalmente aprender a viver em um lugar onde realmente tudo se tornava mais difícil pela situação do país.

Nestes 5 anos, as histórias que conheci mudaram radicalmente minha vida e acredito que também podem mudar a sua, por isso desejo partilhar algumas delas.

Lembro-me de, em uma oportunidade, conhecer a uma mulher que havia saído da Venezuela em busca de uma vida melhor no Brasil. A encontrei em Boa Vista, no estado de Roraima e aos poucos fui conhecendo sua história.

Um dia sim e outro não

Quando lhe perguntei por que havia decidido sair do seu país, deixar casa, família, (estava ali com um de seus filhos que tinha deficiência mental e tinha deixado seu marido, outros três filhos e quatro sobrinhos), ela me disse que veio para buscar o que dar de comer para seus filhos. Lhe perguntei como era sua alimentação na Venezuela. Ela me disse: “Nós comemos um dia sim e um dia não!”. Não pude conter minhas lágrimas!

Era impossível imaginar-me naquela situação, mas eu podia entender e sabia que não era uma realidade tão longe da minha. Muitas pessoas que conheço escolhem uma refeição ao dia para fazer; não há outra saída.

Para eles, a fome é sua companheira de caminho.

É comum encontrar pessoas que não tomam café da manhã para ter o que almoçar.

Parte de Nós sobre a Missão na Venezuela-2019

Pobres com os pobres

Nós, como missionários, experimentamos esta realidade e algumas vezes passamos momentos difíceis, mas graças a Deus sempre tínhamos o que comer, ainda que fosse pouco. Lembro-me que em uma noite, não tínhamos o que fazer para jantar.

Diante disso, alguns foram dormir mais cedo, enquanto outros se contentaram em comer um pedaço de abacaxi congelado que havia sobrado na geladeira. Estas experiências me ensinaram a alegrar-se com o pouco.

Me lembro que durante muitos meses nossa sobremesa sempre era laranja, pois era a doação que ganhávamos de uma feira. Entre nós era motivo para dar risadas, e alguém dizia: “Adivinhem o que temos hoje de sobremesa?”. E todos respondíamos: “Laranja!”. Aprendemos a encontrar a alegria na simplicidade.

Não tínhamos grandes banquetes, raramente comíamos carne, mas éramos felizes por estarmos ali. Aprendemos a valorizar as coisas e a sempre nos lembrarmos daqueles que não têm a mesma oportunidade que nós.

Nada é jogado fora! Nada se desperdiça!

Lição para a vida

Isso nos faz refletir e surge a pergunta: será que estamos dando valor ao que temos? Quantas vezes reclamamos por que nos falta isto ou aquilo na nossa mesa?

Aqui é comum escutar as pessoas dizerem: “éramos ricos e não sabíamos”, “agora damos valor ao que tínhamos antes”. Realmente, só damos valor às coisas depois que as perdemos.

Porém, é possível mudar esta atitude: valorize o que você tem; quando estiver na frente de um prato de comida, levante seus olhos ao céu e agradeça! Tenha a certeza de que muitas pessoas gostariam de estar em seu lugar e fariam tudo por isso.

Se você ainda depende de seus pais, agradeça a eles por trazer a comida para casa. Se você a consegue com seu trabalho, agradeça a Deus por ter dado forças para trabalhar e uma situação financeira ao menos suficiente para ter o necessário.

Lembre-se sempre que aqui um trabalhador recebe 2 dólares por um mês de trabalho e mais 2 para alimentação.

Tenho certeza de que você ganha muito mais do que isso.

Seja agradecido e, às vezes, escolha renunciar a algo que goste para oferecer por aqueles que não podem escolher renunciar, pois estão obrigados a isso. Partilhe o que você tem com aqueles que não tem.

Talvez você não consiga resolver o problema da fome no mundo, mas pelo menos, lutará por um mundo melhor e mais solidário.

Francisco Luís, missionário de vida na Venezuela

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