A Misericórdia de Deus na missão da Igreja
É preciso que a Igreja do nosso tempo tome consciência mais profunda e particular da necessidade de dar testemunho da misericórdia de Deus em toda a sua missão, em continuidade com a tradição da Antiga e da Nova Aliança e, sobretudo, no seguimento do próprio Cristo e dos seus Apóstolos.
A Igreja deve dar testemunho da misericórdia de Deus revelada em Cristo, ao longo de toda a sua missão de Messias, professando-a em primeiro lugar como verdade salvífica de fé necessária para a vida em harmonia com a fé; depois, procurando introduzi-la e encarná-la na vida tanto dos fiéis, como, na medida do possível, na de todos os homens de boa vontade.
Finalmente, professando a misericórdia e permanecendo-lhe sempre fiel, a Igreja tem o direito e o dever de apelar para a misericórdia de Deus, implorando-a perante todas as formas do mal físico ou moral, diante de todas as ameaças que tornam carregado o horizonte da humanidade contemporânea.
A Igreja professa e proclama a Misericórdia de Deus
A Igreja deve professar e proclamar a misericórdia divina em toda a sua verdade, tal como nos é transmitida pela Revelação. Na vida quotidiana da Igreja, a verdade sobre a misericórdia de Deus, expressa na Bíblia, repercute-se como eco perene em numerosas leituras da Sagrada Liturgia.
Há teólogos que afirmam ser a misericórdia o maior dos atributos e perfeições de Deus; e a Bíblia, a Tradição e toda a vida de fé do Povo de Deus nos oferecem testemunhos inesgotáveis. Não se trata aqui da perfeição da imperscrutável essência de Deus no mistério da própria divindade, mas da perfeição e do atributo, graças aos quais o homem, na verdade íntima da sua existência, se encontra com maior intimidade e maior frequência em relação autêntica com o Deus vivo.
A Igreja vive uma vida autêntica quando professa e proclama a misericórdia, o mais admirável atributo do Criador e do Redentor, e quando aproxima os homens das fontes da misericórdia do Salvador, das quais ela é depositária e dispensadora.
Nesse contexto, assumem grande significado a meditação constante da Palavra de Deus e, sobretudo, a participação consciente e refletida na Eucaristia e no sacramento da Penitência ou Reconciliação.
A Eucaristia aproxima-nos sempre do amor que é mais forte do que a morte. A própria ação eucarística, celebrada em memória d’Aquele que na sua missão messiânica nos revelou o Pai por meio da Palavra e da Cruz, atesta o inexaurível amor, em força do qual Ele deseja sempre unir-se e como que tornar-se uma só coisa conosco, vindo ao encontro de todos os corações humanos.
O sacramento da Penitência ou Reconciliação aplana o caminho a cada um dos homens, mesmo quando sobrecarregados com graves culpas. Neste Sacramento, todos os homens podem experimentar de modo singular a misericórdia, isto é, aquele amor que é mais forte do que o pecado.
A misericórdia em si mesma, como perfeição de Deus infinito é também infinita. Infinita, portanto, e inexaurível é a prontidão do Pai em acolher os filhos pródigos que voltam à sua casa. São infinitas também a prontidão e a força do perdão que brotam continuamente do admirável valor do Sacrifício do Filho.
Nenhum pecado humano prevalece sobre esta força e nem sequer a limita. Da parte do homem pode limitá-la somente a falta de boa vontade, a falta de prontidão na conversão e na penitência, isto é, o permanecer na obstinação, que está em oposição com a graça e a verdade, especialmente diante do testemunho da cruz e da ressurreição de Cristo.
É por isso mesmo que a Igreja professa e proclama a conversão. A conversão a Deus consiste sempre na descoberta da sua misericórdia, isto é, do amor que é paciente e benigno. A conversão a Deus é sempre fruto do retorno para junto deste Pai, rico em misericórdia.
O autêntico conhecimento do Deus da misericórdia, Deus do amor benigno, é a fonte constante e inexaurível de conversão, não somente como momentâneo ato interior, mas também como disposição permanente, como estado de espírito
A Igreja contemporânea está profundamente consciente de que só apoiada na misericórdia de Deus poderá realizar as tarefas que derivam da doutrina do Concílio Vaticano II; e em primeiro lugar, a tarefa ecumênica que tende a unir todos os que creem em Cristo.
A Igreja procura pôr em prática a Misericórdia
Jesus Cristo ensinou que o homem não só recebe e experimenta a misericórdia de Deus, mas é também chamado a ter misericórdia para com os demais.
A Igreja vê nestas palavras um apelo à ação e esforça-se por praticar a misericórdia. Se todas as bem-aventuranças do Sermão da Montanha indicam o caminho da conversão e da mudança de vida, a que se refere aos misericordiosos é particularmente eloquente a tal respeito.
O homem alcança o amor misericordioso de Deus e a sua misericórdia, na medida em que ele próprio se transforma interiormente, segundo o espírito de amor para com o próximo.
Neste sentido, Cristo crucificado é para nós o modelo, a inspiração e o incitamento mais nobre. Baseando-nos neste impressionante modelo, podemos, com toda a humildade, manifestar a misericórdia para com os outros, sabendo que Cristo a aceita como se tivesse sido praticada para com Ele próprio.
Em todas as fases da história, mas especialmente na época atual, a Igreja deve considerar como um dos seus principais deveres proclamar e introduzir na vida o mistério da misericórdia.
Tal é o direito e o dever da Igreja, em Cristo Jesus: direito e dever para com Deus e para com os homens. Quanto mais a consciência humana, vítima da secularização, esquecer o próprio significado da palavra misericórdia, e quanto mais, afastando-se de Deus, se afastar do mistério da misericórdia, tanto mais a Igreja tem o direito e o dever de apelar com grande clamor para o Deus da misericórdia.
A mesma Igreja professa e proclama que a manifestação clara de tal misericórdia se verificou em Jesus crucificado e ressuscitado, isto é, no Mistério pascal.
É este Mistério que contém em si a mais completa revelação da misericórdia, isto é, daquele amor que é mais forte do que a morte, mais poderoso do que o pecado e que todo o mal, do amor que ergue o homem das suas quedas, mesmo mais profundas, e o liberta das maiores ameaças.
O homem contemporâneo interroga-se com profunda ansiedade quanto à solução das terríveis tensões que se acumulam sobre o mundo e se entrecruzam nos caminhos da humanidade.
É, pois, necessário que tudo o que acabamos de dizer sobre a misericórdia se transforme continuamente em fervorosa oração, num clamor a suplicar a misericórdia, segundo as necessidades do homem no mundo contemporâneo.
E que este clamor esteja impregnado de toda a verdade sobre a misericórdia que tem expressão tão rica na Sagrada Escritura e na Tradição, e também na autêntica vida de fé de tantas gerações do Povo de Deus. Com este clamor apelamos, como fizeram os autores sagrados, para o Deus que não pode desprezar nada daquilo que Ele criou, para o Deus que é fiel a si próprio, à sua paternidade e ao seu amor.
Como os Profetas, apelamos para o amor que tem características maternais e, à semelhança da mãe, vai acompanhando cada um dos seus filhos, cada ovelha desgarrada, ainda que houvesse milhões de extraviados, ainda que no mundo a iniquidade prevalecesse sobre a honestidade e ainda que a humanidade contemporânea merecesse pelos seus pecados um novo «dilúvio», como outrora sucedeu com a geração de Noé.
Recorramos, pois, a tal amor, que permanece amor paterno, como nos foi revelado por Cristo na sua missão messiânica, e que atingiu o ponto culminante na sua Cruz, morte e ressurreição!
Recorramos a Deus por meio de Cristo, lembrados das palavras do Magnificat de Maria, que proclamam a misericórdia de geração em geração.
Imploremos a misericórdia divina para a geração contemporânea! Que a Igreja, que procura, a exemplo de Maria ser em Deus, mãe dos homens, exprima nesta oração a sua solicitude maternal e o seu amor confiante, donde nasce a mais ardente necessidade da oração.
Elevemos as nossas súplicas, guiados pela fé, pela esperança e pela caridade, que Cristo implantou nos nossos corações para que a misericórdia de Deus seja sempre derramada em toda a humanidade.
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