A parábola do filho pródigo e a misericórdia Divina por São João Paulo II

No Evangelho de São Lucas, em especial na parábola do filho pródigo (Lc 15. 11-32), encontramos uma singular correspondência com a tradição da misericórdia divina: por meio de uma linguagem simples e profunda, conhecemos Deus Pai que sempre perdoa o povo de Israel.

Nesta parábola, a essência da misericórdia divina — embora no texto original não seja usada a palavra “misericórdia” — aparece de modo muito claro. Contribui para isso não tanto a terminologia, como nos Livros do Antigo Testamento, mas a analogia, que permite compreender com maior profundidade o próprio mistério de misericórdia, como drama profundo que se desenrola entre o amor do pai e a prodigalidade e o pecado do filho.

Este filho, que recebe do pai a parte da herança que lhe toca, deixa a casa paterna para esbanjar essa herança numa terra longínqua “vivendo dissolutamente”.

Em certo sentido é o homem de todos os tempos, a começar por aquele que foi o primeiro a perder a herança da graça e da justiça original (Adão). Neste ponto, a analogia é muito vasta. Indiretamente, a parábola se estende a todas as rupturas da aliança de amor: a toda perda da graça e todo o pecado.

Ao contrário do que acontecia na tradição profética, esta analogia, embora se possa estender também a todo o povo de Israel, não o visa em primeiro lugar.

Aquele filho, “depois de ter esbanjado tudo… começou a passar privações”, tanto mais que sobreveio grande carestia “naquela terra” para onde ele tinha ido depois de abandonar a casa paterna. Em tal situação, “bem desejava matar a fome” com qualquer coisa, até mesmo “com as alfarrobas que os porcos comiam”, animais que ele guardava, ao serviço de “um dos habitantes daquela terra”. Mas até isso lhe era recusado.

A analogia dessa parábola nos faz olhar para dentro, para o interior do homem. A herança que o jovem tinha recebido do pai era constituída por certa quantidade de bens materiais. Mas, mais importante do que esses bens eram a sua dignidade de filho na casa paterna.

Ao se ver nessa situação, retirada de si até sua dignidade, o filho decide voltar para a casa do Pai e arrependido dizer: “Pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como a um dos teus empregados ” [Lc 15,18 s.].

Essa parte do evangelho nos mostra de fato o verdadeiro problema, o filho não sei via mais como filho, sentia que perdeu sua dignidade de filho, seus direitos e sua identidade.

O filho pródigo chegou a conclusão de que já não tem mais direito algum, senão o de ser um empregado na casa do pai.

Este raciocínio, precisamente, demonstra que, no âmago da consciência do filho pródigo, se manifesta o sentido da dignidade perdida, daquela dignidade que brota da relação do filho com o pai.

Um ponto muito interessante desta parábola é que nela não encontramos nenhuma vez o termo justiça, assim como não encontramos o termo misericórdia no original. Porém, a relação da justiça com o amor se manifesta como misericórdia o tempo todo nessa parábola. Torna-se claro que o amor se transforma em misericórdia quando é preciso ir além da norma exata da justiça, pois a misericórdia é uma face da justiça divina.

O filho pródigo, depois de ter dissipado os bens recebidos do pai, ao regressar, merece apenas ganhar para viver, trabalhando na casa paterna como empregado, essa seria a exigência da ordem da justiça, até porque aquele filho, com o seu comportamento, não tinha somente dissipado a parte de herança que lhe competia, mas tinha também magoado profundamente e ofendido o pai.

Mas o pai age diferente: ao ver o filho ele sente compaixão, pois o filho estava em uma situação sub-humana, sem a sua dignidade e identidade; no mesmo momento, o pai busca restaurar a dignidade do filho.

O pai do filho pródigo é fiel à sua paternidade, fiel ao amor que desde sempre tinha dedicado ao seu filho. Tal fidelidade se manifesta na parábola não apenas na prontidão em recebê-lo em casa, quando ele voltou depois de ter esbanjado a herança, mas sobretudo na alegria e no clima de festa tão generoso para com o esbanjador que regressa.

A misericórdia apresentada por Cristo na parábola do filho pródigo tem a característica interior do amor, que no Novo Testamento é chamado ágape. Este amor é capaz de debruçar-se sobre todos os filhos pródigos, sobre qualquer miséria humana e, especialmente, sobre toda miséria moral, sobre o pecado.

Quando isto acontece, aquele que é objeto da misericórdia não se sente humilhado, mas como que reencontrado. O pai lhe manifesta alegria, antes de mais nada por ele ter sido reencontrado e voltado para casa. Esta alegria indica um bem que não foi destruído: o filho, embora pródigo, não deixa de ser realmente filho de seu pai. Indica ainda um bem reencontrado: no caso do filho pródigo, o regresso à verdade sobre si próprio.

A parábola mostra que a relação de misericórdia se baseia na experiência daquele bem que é o homem, na experiência comum da dignidade que lhe é própria do ser humano, a misericórdia restaura a dignidade humana, a misericórdia ajuda o filho a voltar para casa e lhe dá novamente a identidade de filho.

A misericórdia faz com que o filho pródigo veja a Verdade – que o leva a humildade, acolhendo no Pai o único bem necessário.

A parábola do filho pródigo exprime, de maneira simples mas profunda, a realidade da conversão, que é a mais concreta expressão da obra do amor e da presença da misericórdia no mundo humano.

O verdadeiro significado da misericórdia não consiste apenas no olhar, a misericórdia se manifesta com a sua fisionomia característica quando reavalia, promove e sabe tirar o bem de todas as formas de mal existentes no mundo e no homem.

Entendida desta maneira, constitui o conteúdo fundamental da mensagem messiânica de Cristo e a força constitutiva da sua missão.

A misericórdia nunca cessou de se manifestar nos corações e nas obras da Igreja, como prova particularmente criadora do amor, que não se deixa vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem.

É preciso que o rosto genuíno da misericórdia seja sempre descoberto de maneira nova. A misericórdia se apresenta como particularmente necessária nos nossos tempos, pois somente a misericórdia restaura a dignidade, mostra a verdade e nos põe em comunhão.

 

Fonte:

CARTA ENCÍCLICA DIVES IN MISERICORDIA – DO SUMO PONTÍFICE JOÃO PAULO II – SOBRE A MISERICÓRDIA DIVINA

 

 

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