Palavra do Mês de Abril
“Pai, pequei contra o Céu e contra ti, já não sou digno de ser chamado teu filho, trata-me como um dos teus empregados. Partiu então e foi ao encontro de seu Pai”. (Lc 15,19-20)
Dentro de cada homem está a Lei natural, que rege e conduz para a Vida. São Tomás[1], acrescenta que essa lei consiste em “fazer o bem e evitar o mal” e é à base da Moral cristã que, iluminando nossa consciência, nos transforma à “estatura de Cristo, no estado do homem perfeito”.[2] Portanto, Jesus não apenas se revela à humanidade, mas também revela quem é o homem e, assim, filhos no Filho nos mostra o caminho de volta ao Pai, à nossa origem. Mergulhando nesse mistério da revelação desejamos, neste mês, aprofundar no reconhecimento de nossa dignidade como filhos amados e regenerados.
Sobre a figura do filho mais novo, a passagem do Evangelho de Lucas 15 relata que, caindo em si, ele sente a necessidade de retornar à sua casa, à sua origem, ao seu lugar, enfim, à sua essência, e nós percebemos que não há outra maneira a não ser o retorno ao Pai. A saudade de quem nós somos é causa de conflitos interiores, pois nos mostra a desfiguração ocasionada pelo pecado. Mesmo assim, nossa queda é incapaz de modificar a identidade primeira doada pelo Criador: o mal não cria, mas distorce a criação. É exatamente isso que ele, o mal, realiza nas criaturas, em nós: a distorção de nossa imagem, da nossa identidade para ofuscar nossa consciência e fazer que, caindo no esquecimento, não se torne possível reconhecer a nós mesmos e nosso próximo. Consequentemente, como relatado no mês passado, somos levados a viver uma vida tíbia e acomodada e a ser aquilo que não somos. Em suma, o pecado não nos define e foi no encontro com essa verdade que o filho mais novo teve seu despertar: ele é filho, digno, tem um lugar, tem um Pai.
“Pai, pequei contra o Céu e contra ti, já não sou digno de ser chamado teu filho, trata-me como um dos teus empregados. Partiu então e foi ao encontro de seu Pai”. (Lc 15,19-20)
Na caminhada cristã, e em particular na vivência do nosso Carisma de misericórdia, encontramos uma humanidade profundamente ferida, esquecida e desfigurada. Por vezes, nas evangelizações e nas casas de acolhida, contemplamos a mudança daqueles que encontramos sem nome, sem identidade, sem história. Mas na redescoberta do Pai Misericordioso, aquilo que era escuro vai sendo iluminado e vai se clareando o rosto, o nome e a história daquele que é filho. Que Milagre! Esse constante abaixar-se de Deus até nossa condição para reerguer o caído e despertar o homem é a imortal insistência amorosa de Deus! Mas, por que por vezes nós desistimos do outro e de nós mesmos? Por que diante da debilidade, o desânimo nos acomoda a uma vida passiva que culmina na morte? Por que, por vezes não insistimos? O medo de fracassar, de ser feridos ou invasivos é como um freio de mão que não nos permite progredir. O maior impedimento da santidade não é o pecado em si, mas o sentimento e o medo do fracasso, pois quem se deixa dominar e paralisar por esses sentimentos, já se auto-condenou, fechou as portas da misericórdia e não consegue mais voltar a insistir ou tentar. Mesmo feridos, devemos insistir, pois Cristo, no flagelo, não desistiu e isso está presente em nosso “DNA espiritual”, como consta em nossa carta testamento[3]:
“Sabemos que o segredo deste amor está naquele ‘como eu vos amei… Ninguém tem maior amor daquele que dá a vida pelos seus amigos’ (Jo 15,12-13). Não podemos por isso terminar esta carta sem lembrá-los que ‘servir’ Jesus significa ‘segui-lo’ até à morte e à morte de cruz (cf. Fl 2,8). Escolhemos Jesus Abandonado como nosso único esposo, acolhendo todo abandono, miséria e sofrimento como maior tesouro da nossa vida, deixando-nos ferir, ‘circuncidar’ o nosso coração pelo sofrimento dos nossos irmãos, reconhecendo nas nossas chagas, as chagas do Ressuscitado, fontes da Misericórdia para o mundo”.
É nesta “santa insistência” que o filho mais novo reconhece sua condição e retorna; precisou ver o mais escuro de suas escolhas, lidar com seu fracasso, ver a destruição para despertar e voltar. Esse profundo ato de contrição está ligado a duas dimensões particulares: o arrependimento e o reconhecimento. Quando falamos de arrependimento, nos vemos livres da tentação do fracasso, pois arrepender-se tem, entre seus significados, a metanoia, ou seja a conversão, o mudar a direção e o pensamento. O arrependimento é aquele profundo mover interior que nos tira da escuridão e nos traz de volta à luz, é aquela profunda contrição que evoca uma mudança. Por sua vez a palavra “reconhecer”, é como um revisitar, como voltar a um lugar conhecido, familiar, mas também um lugar onde somos conhecidos. Por isso podemos afirmar que o arrependimento é o caminho que abre as portas para a misericórdia, para a casa do Pai. Mas a inquietação e a tentação que estão infiltradas no coração daquele filho perdido se resume em “trata-me com um dos teus empregados”. De fato, o sentimento de punição, o apego à culpa podem nos fazer voltar, mas não por inteiro; podem nos mudar, mas não por temor e sim por medo. Como, então, é possível voltar e assumir nosso lugar em Deus após o pecado? Assumir nossa família, nossos irmãos? Assumir a vontade do Pai? Como nos ensina São Francisco de Sales, na sua carta à “Filotéia”: É necessário romper o afeto ao pecado. E recordo que o afeto ao pecado não é o ato pecaminoso, mas a saudade dele ou ainda aquele sentimento que te prende a ele, podendo ser a culpa, a mágoa, o vitimismo, a falta de perdão e outros.
“Pai, pequei contra o Céu e contra ti, já não sou digno de ser chamado teu filho, trata-me como um dos teus empregados. Partiu então e foi ao encontro de seu Pai”. (Lc 15,19-20)
O arrependimento nos leva a uma nova atitude, o reconhecimento do nosso lugar nos faz saber o caminho de volta, mas a cura que nos liberta e rompe com o pecado é a intimidade com o Pai. O filho mais novo, ao decidir ir ao encontro de seu Pai, consegue romper com a preocupação fisiológica da fome, da sede, do frio… ele precisa voltar ao Pai, àquela intimidade mais profunda, àquele relacionamento de uma via unitiva da alma com Deus. É no momento em que o Pai o abraça e o cobre de beijos que caem todas as dúvidas, as frustrações, os medos.. e é nessa profunda relação do Pai com o Filho que somos inflamados no Espírito a viver a Vida em abundância que já saboreamos nesse mundo; Vida que teremos em plenitude no seio da Trindade, onde todos nós festejaremos com os irmãos a vitória do amor.
“Não cessaremos, porém, de procurar o irmão nos caminhos do amor, de interceder por ele, de amá-lo com os gemidos do Espírito (cf. Rm 8,26) e com entranhas de Misericórdia, com coração aberto (cf. 2Cor 6,11-12; 7,2-3), de derramar por ele as lágrimas da espera a fim de que, voltando, encontre sempre a porta aberta, os braços estendidos, o olhar amigo, o Amor Misericordioso do Pai e do Filho, no Espírito Santo, Senhor que dá a vida (cf. Lc 15,11ss).O pecador que volta seja o mais amado entre os irmãos, porque “… o amor cobre uma multidão de pecados” (1Pd 4,8)[4]
Como família Aliança de Misericórdia, que nossas casas e grupos sejam sempre o lugar onde reconhecemos nossa essência e somos acolhidos como esse filho que retorna, encontrando sempre o espaço e o lugar que possuímos nesse lar. Que a saudade seja o sentimento que nos move a desejar estar juntos e a encontrar a presença de Jesus em nosso meio, como chama de esperança para nossas missões. Que nessa família sejamos formados, moldados, regenerados e restaurados pela graça da Misericórdia que nos ensina a não desistir, mas a insistir; a não parar, mas a progredir no amor; a não desanimar, mas a esperar como o Pai misericordioso. Enfim, renovemos nossa esperança, purifiquemos nosso olhar para que todos sejamos verdadeiramente despertados em nossa consciência e tenhamos a certeza de que, como filhos amados do Pai, “toda criação aguarda a nossa manifestação[5]”.
PROPÓSITO:
- Reveja seu diário espiritual ou anotações e avalie seus passos na busca da intimidade com o Pai: o que você hoje desconhece em si? Há algo em que desistiu de lutar, precisa insistir e/ou perdoar?
- Aproveitando bem o tempo quaresmal, faça um profundo exame de consciência e uma boa confissão, com o desejo de reconhecer o Rosto misericordioso do Pai e sentir, nos sacramentos da confissão, Seu abraço que liberta;
- Junto com seus irmãos, definam um propósito de conversão comunitário (ser pontuais, promover a oração uns pelos outros, uma acolhida, uma evangelização esquecida, a procura de um irmão que não está mais no grupo).
[1] Cf. AQUINO. S. Th. I-II. q. 91. a. 2. “[…] quasi lumen rationis naturalis, quo discernimus quid sit bonum et malum, quod pertinet ad naturalem legem, nihil aliud sit quam impressio divini luminis in nobis”.
[2] Efésios 4,13
[3] Estatuto e Constituições, Aliança de Misericórdia. Carta Testamento §16.
[4] Pe. Henrique – No Oceano da Misericórdia Infinita – Pg.35
[5] Rm 8,19
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